📚 Livro de "Rubem Alves" - 'Lições do Velho Professor' - "CARPE DIEM"
🌅 Comovo-me ao recordar-me do poema do Vinicius “O haver”. é um poema crepuscular. Ele contempla o horizonte avermelhado, volta-se para trás e faz um inventário do que sobrou. Fiquei com vontade de fazer algo parecido, sabendo que não sou Vinicius, não sou poeta, nada sei sobre métrica e rimas. E eu começaria cada parágrafo com a mesma palavra com que ele começou suas estrofes: Resta...
🌅 Resta a luz do crepúsculo, essa mistura dilacerante de beleza e tristeza. Antes que comece ao fim do dia, o crepúsculo começa na gente. O Miguelim menino já sentia assim: “O tempo não cabia. De manhã já era noite...”. Assim eu me sinto, um ser crepuscular. Um verso de Rilke me conta a verdade sobre a vida: “Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?”.
🤝 Resta os amigos. Quando tudo está perdido, os amigos permanecem. Lembro-me da antiga canção de Carole King “You’ve got a friend”:
🎵 Se você está triste, no fundo do abismo e tudo está dando errado, precisando de alguém que o ajude – feche os olhos e pense em mim. Logo, logo estarei ao seu lado para iluminar a noite escura. Basta que você chame o meu nome. Você sabe que eu virei correndo pra ver você de novo. Inverno, primavera, verão ou outono, basta chamar que eu estarei ao seu lado. Você tem um amigo...
🤝 Eu tenho muitos amigos que continuam a gostar de mim a despeito de me conhecerem. E tenho também muitos amigos que nunca vi.
⏳ Resta a experiência de um tempo que passa cada vez mais depressa: tempus fugit. “Quando se vê, já são seis horas. Quando se vê, já é sexta-feira. Quando se vê, já é Natal. Quando se vê, já terminou o ano. Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê, já passaram 50 anos...” (Mario Quintana).
🌍 Resta um amor por nossa Terra, nossa namorada, tão maltratada por pessoas que não a amam. Meu deus mora nas fontes, nos rios, nos mares, nas matas. Mora nos bichos grandes e nos bichos pequenos. Mora no vento, nas nuvens, na chuva. Eu poderia ter sido um jardineiro. Como não fui, tento fazer jardinagem como educador, ensinando às crianças, minhas amigas, o encanto pela natureza.
😌 Resta um Rubem por vezes áspero, com quem luto permanentemente e que, frequentemente, burlando a minha guarda, aflora no meu rosto e nas minhas palavras, machucando aqueles que amo.
🏰 Resta uma catedral em ruínas onde outrora moravam meus deuses. Agora ela está vazia. Meus deuses morreram. Suas cinzas, então, voaram ao vento.
🎨 Resta, na catedral vazia, a luz dos vitrais coloridos, o silêncio, o repicar dos sinos, o canto gregoriano, a música de Bach, de Beethoven, de Brahms, de Rachmaninoff, de Fauré, de Ravel...
🎵 Resta ainda, nos pátios da catedral arruinada, a música do Jobim, do Chico, do Piazzola...
🤔 Resta uma pergunta para a qual não tenho resposta. Perguntaram-me se acredito em Deus. Respondi com versos do Chico: “Saudade é o revés do parto. é arrumar o quarto para o filho que já morreu”.Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que vai voltar ou a que arruma o quarto para o filho que não vai voltar? Sou um construtor de altares. é o meu jeito de arrumar o quarto. Construo meus altares à beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com poesia e música. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto e me aquecem. Mas o abismo permanece escuro e silencioso.
🧒 Resta uma criança que mora nesse corpo de velho e procura companheiros para brincar. De que é que a alma tem sede? “De qualquer coisa como tudo que foi a nossa infância. Dos brinquedos mortos, das tias idas. Essas coisas é que são a realidade, embora já morressem. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança” (Bernardo Soares).
🤡 Resta um palhaço... Na véspera de minha volta ao Brasil, a jovem ruiva sardenta que havia sido minha aluna entrou na minha sala e me disse: “Sonhei com você. Sonhei que você era um palhaço”. E sorriu. Tenho prazer em fazer rir os outros com minhas palhacices. O que escrevo, frequentemente, é um espetáculo de circo. Faço malabarismos com palavras. Pois a vida não é um circo?
🐣 Resta uma ternura por tudo o que é fraco, do pássaro de asa quebrada ao velho trôpego e surdo. Fui um adolescente fraco e amedrontado. Apanhei sem reagir. Cresceu então dentro de mim uma fera que dorme. Toda vez que vejo uma pessoa humilde e indefesa sendo humilhada por uma pessoa que se julga grande coisa, a fera acorda e ruge. Tenho medo dela.
📜 Resta a minha fidelidade às minhas opiniões que teimo em tornar públicas, o que me tem valido muitas tristezas e sucessivos exílios. Mas sei que minhas opiniões, todas as opiniões, não passam de opiniões. Não são a verdade. Ninguém sabe o que é a verdade. Meu passado está cheio de certezas absolutas que ruíram com os meus deuses. Todas as pessoas que se julgam possuidoras da verdade se tornam inquisidoras. Por isso é preciso tolerância.
😢 Resta uma tristeza de morrer. A vida é tão bonita. Não é medo. é tristeza mesmo. Lembro-me dos versos da Cecília, que sentia a mesma coisa. “E fico a meditar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega. O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas nem gaivotas. Apenas sobre-humanas companhias. De longe o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isso...”
😱 Resta um medo do morrer – daquelas coisas que vêm antes que a morte chegue. Acho que as pessoas deveriam ter o direito de dizer, se quisessem: “É hora de partir...”. E partir. Se Deus existe e se Deus é bondade, não posso crer que Ele ou Ela nos tenha condenado ao sofrimento, como última frase da nossa sonata. A última frase deve ser bela.
⏳ Resta, quanto tempo? Não sei. O relógio da vida não tem ponteiros. Só se ouve o tique-taque... Só posso dizer: carpe diem – colha o dia como um morango vermelho que cresce à beira do abismo. é o que tento fazer.
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